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A primeira do Brasil independente ocorreu em 1832, durante a revolta paraense conhecida como Cabanagem, quando dois judeus e alguns ingleses foram mortos numa onda de xenofobia contra estrangeiros. Mas o horror, mesmo, ocorreu em 1901, nas localidades de Cametá, Baião, Mocajuba, Araquereruba, Mangabeira, Prainha, avançando pelas margens dos rios, onde os judeus tinham suas casas-armazéns, geralmente nos igarapés do "jacob", do "isaac" ou do "moisés". Foi quando ficou conhecido o episódio do "mata-judeu" e o massacre de Massauari, em Maués. Em Cametá, a anterior tranqüilidade dos Sabbá transformou-se, repentinamente, em pilhagens e saques do comércio judeu, fazendo com que, na época, a comunidade buscasse refúgio em Belém. Mas, de um modo geral, os judeus marroquinos que vieram para a Amazônia conseguiram se adaptar bem às novas condições. Eliezer Salgado (Elmaleh) trabalhava no regatão, no rio Purus, para sustentar nove filhos. Servia, também, de chazan e mohel, oficiava casamentos e brit-milot e, em sua casa, como em outras ribeirinhas, oficiavam-se os serviços de Rosh Hashaná e Yom Kipur, segundo relato de seus filhos e descendentes. Para esses judeus marroquinos, a família era o núcleo a partir do qual construíam sua judeidade em plena Amazônia. A identidade judaica não era apenas profundamente enraizada, mas admitida com orgulho e alegria. As histórias contadas pelos descendentes remetem à tradição dos antepassados: os que moravam longe pegavam seus batelões para passar os Yamim Noraim nas cidades maiores, como Alenquer ou Cametá. Na sexta-feira à tarde, depois de fechar a loja, iniciavam-se os preparativos para o Shabat com toda a hiba (pompa), vestindo-se de linho branco, engomado, e gravata. A mãe, numa cadeira de espaldar, punha-se a meldar (rezar) e pitnear (cantar) o Shir Hashirim (Cântico dos Cânticos), mizmorim (canções) e, durante o Arbit (reza da noite), reuniam-se em casa de um ou outro. Mesmo na ausência de rabinos, os shlichim zelavam pelo rigor ritual, incluindo a lavagem do corpo e providências para o enterro. Ainda hoje sobrevivem como testemunhos da presença judaica na região os cemitérios de Cametá, Óbidos, Itaituba, Santarém, no Pará; e Parintins, Maués, Itacoatiara, Manacapuru, Tefé, no Amazonas; e, ainda, Iquitos, Contamana, Yurimaguas e Caballococha, no Peru. Os mesmos shlichim cuidavam do ensino de hebraico para os jovens, das cerimônias de casamento e brit-milá, além do culto e das orações. E, não raro, consultas aos rabinos e Chachamim que permaneceram no Marrocos. Há até uma responsa solicitada pela comunidade paraense, do rabi Itzchak (Ualid), grão-rabino e Av do Beit Din (chefe do Tribunal Rabínico) de Tetuan, publicada em Livorno nos anos 1855 e 1876. Os tzadikim eram venerados e dentre eles destacava-se Shimon Bar Iochai. À mesa, a cashrut era adaptada às condições locais, sem ferir a Halachá. Em vez do vinho, a cachaça, as frutas tropicais e peixes para substituir as iguarias marroquinas. Com exceção da dafina e do couscous, de que não abriam mão de forma alguma. Os filhos aos poucos deixavam de falar o Haquitia, uma mistura de árabe, hebraico e ladino, mantendo apenas expressões muito significativas e sem paralelo em português (como traduzir, por exemplo, achlash, fecheado, abu, chosmin e sachorita?), e o ladino ficava como uma segunda língua falada em casa, entre los nuestros e cada vez menos. Com o fim da riqueza propiciada pela borracha, muitos judeus abandonaram o "sertão" e se estabeleceram em Belém ou emigraram para o sul. As novas gerações se destacaram nas diversas profissões e na vida social de Belém e Manaus. Mas, não poucos permaneceram embrenhados na selva, naquelas pequenas vilas amazônicas, onde constituíram famílias e seus descendentes são conhecidos, hoje, como os "hebraicos", embora poucos guardem ainda as tradições de seus antepassados. Um típico exemplo do "hebraico" do Amazonas é Paulo Sicsu, que vive em Parintins. Todo ano ele vai ao cemitério judaico local, com suas 66 sepulturas de judeus marroquinos, reverenciar a memória de seu bisavô, Abraham Joseph Sicsu. O jovem fotógrafo Paulo conta que seu bisavô veio de Tânger e, à época, mantinha suas tradições, convivendo na pequena comunidade local; mas, com o tempo, à medida que escasseavam os judeus e o minian já era difícil, ele foi relaxando e abandonando as práticas religiosas.Casou com uma não judia, típica amazonense, tiveram cinco filhos, crescidos fora do judaísmo. No tempo em que seu pai, neto de Abraham, ainda era criança, os contatos com o judaísmo e a comunidade judaica tornaram-se cada vez mais raros, até desaparecerem."Eu continuo vindo aqui, em busca de minhas tradições", disse ele num encontro, em 1986, com o rabino Jacques Cukierhorn que, na ocasião, "ciceroneava" o escritor norte-americano James Ross. E, para surpresa de seus interlocutores, Paulo aprendeu, naquele momento, a ler um kadish. Um fenômeno que retrata esse casamento entre a cultura judaica e a sociedade local é o caso do rabi Shalom Emanuel Muyal (Morashá nº 53) que veio a Manaus, em 1910, para angariar fundos para uma ieshivá no Marrocos (ou em Jerusalém, não se sabe ao certo) e lá morreu acometido por febre amarela. Foi enterrado no cemitério cristão, pois não havia, então, cemitério judeu em Manaus, e, quando seu sobrinho, ministro de governo do já criado Estado de Israel tentou seu translado, mais de 40 anos depois, o governo do Amazonas pediu-lhe que não o fizesse, pois o referido rabino era considerado um santo pela população local. Embora sua sepultura tenha sido, posteriormente, transladada a um apropriado cemitério judaico, anexo ao católico, o "santo rabi" é, ainda hoje, muito venerado pela população local. Hoje, a comunidade de Belém conta com cerca de 300 a 400 famílias; a de Manaus, com 200 famílias. Há uma integração completa no novo ambiente, sem perda, contudo, da identidade ancestral. Exemplo mais brasileiro do judeu marroquino, é o atual presidente do mais popular clube de futebol do Pará, o Remo, Raphael Levy, judeu de quarta geração e, ainda, expoente da comunidade local. Reginaldo Jonas Heller é jornalista e doutorando em História (UFF). Este artigo é baseado na monografia: "Os Judeus do Eldorado" - a imigração dos judeus marroquinos e do norte da África para o Brasil, durante o século XIX. |
Haquitia: um dialeto quase perdido
Com esse título, Yehuda Benguigui, um descendente de judeus marroquinos no Pará, escreveu uma série de artigos sobre esse "dialeto judeu-espanhol falado pelos judeus do Marrocos", conforme definição do "Dicionário de la Lengua Española" publicado pela Real Academia Espanhola. Graças à sua pesquisa, podemos resgatar um pouco deste linguajar caseiro que marcou gerações dos "de los nuestros".
Para se ter uma idéia, reproduzimos a seguir um trecho de uma carta fictícia escrita por Aziza Serruya Benguigui, que bem ilustra o encanto deste ladino arabizado:
"Pero, como nada es completo, al segundo dia del seder, binieron los de Doña Paquita. Unos regalados... El abuelo, simpre haciendo mahloquet com ferazmal Babá sobre toda cosa, no deja escapar nada, todo le molesta: sus darushesh, como ptnéa, los pesukim que dice y hasta como melda. Trajo um Hagadah tan bieja y maltratada que parecia que la havia sacado de um guenizah...Itzchakito uma vez más lloró cuando cantamos el Had Gadia. Le dá manzia com lo que le pasa com el cabritito que la kadeó el gato. Ahora quedo shenfeado com los gatos...Escapado de mal! [...] Que el Dio te cubra de um buen mazal y te libre de los resaim."
Benguigui reproduz, também, um episódio narrado por Reuben Tobelem sobre um casal que de tanto ir a mishmarot, o marido ouviu sua mulher reclamar que não tinha mais roupa para tantas mishmarot. Ele, então, lhe trouxe "una falda negra y uma blusita blanca, muy apropriadas para sepillios e mishmarot" e disse: "Mejorado que nunca lo uses en tu vida".
Apesar de não mais falado, o Haquitia é ainda uma espécie de código peculiar para expressões jocosas, para maldizer ou ironizar, mas acima de tudo para manter viva uma sabedoria ancestral dos descendentes dos judeus marroquinos.
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